Por Marco Antonio Cruz

O olho com o qual fotografa é o olho encarnado – um olho que ocupa um lugar no espaço, que vê e é visto. Da mesma forma, a rua que ele fotografa não se revela, e sim desvela-se. Admirar é, sobretudo, mirar de perto – estar presente.

Poucas cidades do mundo possuem uma iconografia tão rica quanto a cidade do Salvador. O amálgama entre a cidade e seu imaginário é tamanho que mesmo de olhos cerrados é possível vê-la. Mesmo para quem jamais abriu os olhos sob seu sol, a cidade em alguma medida mostra-se. É bem sabido que “Na Baixa do Sapateiro”, notório samba-retrato de Salvador, foi composto por Ary Barroso trinta anos antes de que pudesse pisar, pela primeira vez, as pedras lisas de seu centro antigo. A cidade, antes de vista, é imaginada.

Ao tempo de novos olhos, novos retratos se justapõe na parede do imaginário. A cidade do Salvador ainda seria a cidade de Dorival, Jorge, Fatumbi, e Carybé. E a cidade de Dorival, Jorge, Fatumbi, e Carybé, eventualmente, torna-se também a cidade do Salvador. Um registro circular em que o retrato e a coisa retratada confundem-se no rasgar do tempo. Exu matou um pássaro ontem, com uma pedra que somente hoje atirou. A cidade, antes de vista, é lembrada.

As fotos de Tuíris são, antes de tudo, um retorno à coisa mesma. Imaginemos sua chegada numa Salvador eterna. Dificilmente aportaria de um saveiro na rampa do mercado. A rigor, desembarcaria na estação rodoviária, entre o nó das passarelas e o asfalto abrasador. O olho com o qual fotografa é o olho encarnado – um olho que ocupa um lugar no espaço, que vê e é visto. Da mesma forma, a rua que ele fotografa não se revela, e sim desvela-se. Admirar é, sobretudo, mirar de perto – estar presente.

Assim, em suas fotos, os corpos das gentes se escondem e se fundem à forma-cidade. As paisagens são fugidias e resistem ao quadro. O veículos ora atropelam, ora atravessam. As distâncias se compactam, borrando as fronteiras entre figura e fundo numa gestalt quente e orgânica para a qual o caos dos trópicos e a vida nas ruas finalmente se dá diretamente ao olhar.

Numa Salvador que é lida sempre pela chave dos seus contrastes – cidade alta e cidade baixa – esta abordagem holística resiste às dualidades. Se na Roma antiga a imagem – imago – é representação, espectro, máscara mortuária, na Roma negra não há cadáver a velar. A cidade vive e precisa ser des-mascarada.

Marco Antonio Cruz